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A DEMONIZAÇÃO DA MULHER NAS ICONOGRAFIAS DA IDADE MODERNA

Louyse Sousa Silva[1]


RESUMO O presente artigo se trata de uma análise historiográfica do processo de demonização da figura feminina baseado nas iconografias da modernidade europeia. Tendo suas raízes fincadas na tradição cristã, fomentada pela Inquisição e por discursos teológicos misóginos amplamente popularizados na Europa ocidental do século XV, com o advento da imprensa, mas também, da arte renascentista, as iconografias do período são utilizadas como fontes para representar o papel de “agente de Satã” (DELUMEAU, 2009) que foi atribuído a mulher. Apesar do avanço alcançado pelos Movimentos Feministas, a partir do século XIX, tais discursos e representações misóginas continuam a ser reproduzidos na Contemporaneidade, com uma nova roupagem, mas que ainda servem de justificativa para uma série de injustiças cometidas contra as mulheres.

Palavras-chave: Iconografia. Mulher. Demonização. Misoginia. Idade Moderna

INTRODUÇÃO Segundo a mitologia cristã, Deus teria criado a mulher, Eva, a partir da carne do homem. Portanto, esta seria o “segundo sexo”, submetido ao primeiro. Além disso, Eva é aquela responsável por introduzir o pecado na terra ao cair na tentação da serpente maligna e comer o fruto proibido do Paraíso. Santo Agostinho (354-430), considerado um dos principais padres da Igreja Católica, responsável por anexar o maniqueísmo a doutrina cristã, evidenciou as mulheres da terra como filhas de Eva e, naturalmente inclinadas ao “mal” ou ao Diabo, propriamente dito. Por sua vez, o clérigo São Tomás de Aquino reforça essa visão com suas escrituras, no século XIII, afirmando que a mulher é “um homem com retardo de desenvolvimento” (AQUINO, RANKE-HEINEMANN, 1999). Porém o apogeu dessas ideias se dá após a instauração da Inquisição. O livro Malleus Maleficarum, escrito no século XV pelos Inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger e amplamente propagado pela imprensa por toda a Europa, é o maior exemplar, dentre muitos outros, do discurso de ódio as mulheres na figura do que se pensava serem bruxas e feiticeiras. O documento foi interpretado como um manual para os cristãos caçarem e punirem essas mulheres, com justificativas pautadas nos seus defeitos incansavelmente listados. Jean Delumeau (1923-), historiador das mentalidades religiosas no Ocidente moderno, faz uma análise sobre a diabolização da mulher parafraseando o Martelo das feiticeiras. “A mulher é ministro de idolatria”. Pois “torna o homem iníquo e o faz cometer apostasia”. [...] A mulher é “insensata”, “lamurienta”, “inconstante”, “tagarela”, “ignorante”, “quer tudo ao mesmo tempo”. É “briguenta” e “colérica”. Não existe “cólera mais forte que a sua”. É “invejosa”. É por isso que o Eclesiástico diz: “é mágoa e dor que uma mulher inveja de outra. E tudo isso é o flagelo da língua”. Além dos discursos, Delumeau também tece comentários sobre a iconografia misógina da época, como “Dulle Griet” (1563) do renascentista holandês Pieter Bruegel (1525/1530-1569) e “Branle des folles”, uma xilogravura anônima da década de 1560. Ambas retratam mulheres que seriam “agentes de Satã” (DELUMEAU, 1999). Em sua monografia, o professor de História, Jean Silva, faz uma análise das representações de bruxas nas obras do alemão Hans Grien (1485-1545), é o caso de: “Die Hexen” (1510) e “Three Witches” (1514). As iconografias citadas serão objetos de estudo do presente artigo afim de salientar a forma como as mulheres eram concebidas na modernidade ocidental cristã e como até hoje opera essa cultura misógina que condena e mata milhares de mulheres diariamente. 1. Analise das iconografias misóginas da Modernidade 1.2 Die Hexen[2] (1510)


Figura1: Die Hexen (1510). Por Hans Baldung Grien. Chiaroscuro woodcut, Britsh Museum, London.

Hans Grien, o autor da obra, nasceu no sudoeste da Alemanha, no século XVI. Esse período consiste em intenso controle social e repressão no que tange as práticas consideradas fora do que a Igreja considerava correto, já que o país experimentava a reforma cristã proposta por Lutero. A arte renascentista se desenvolvia e refletia o pensamento religioso vigente de condenação da figura feminina, creditada como origem de todo mal e tendenciosa a pactuar com o demônio por meio de rituais de magia. Acreditava-se, inclusive, que o pacto consistia na relação sexual da mulher com o próprio diabo, isso porque, está foi interpretada por Santo Agostinho como fonte de desejo e erotismo que levava o homem ao pecado. Na xilogravura (Figura 1) é representado o que se imaginava ser o Sabá das bruxas, rituais noturnos em devoção ao diabo que geralmente aconteciam nas florestas, como pode ser observado. As bruxas em questão figuram nuas e parecem estar orquestrando algum tipo de magia que sai de um jarro e possibilita a elas manipular a natureza e até mesmo voar. A mulher que está no centro da obra com o braço levantado ergue uma bandeja com pedaços de carne, que se pensa ser humana. A mitologia criada sobre a bruxaria afirma que o infanticídio era uma característica comum dos rituais do Sabá e que as bruxas matavam e cozinhavam o corpo de crianças para se alimentarem. Acerca disso se “tem uma implicação com dois vieses: o primeiro da mulher relacionada à sua tarefa de cozer, e o segundo a influência das representações dos grupos antropofágicos do novo mundo Americano, recém-descoberto.” (SILVA, 2015, p. 73) Jean Silva chama atenção para elementos simbólicos presentes na iconografia de Hans como os jarros com “Unguento”, espécie de poção mágica, e o associa ao mito de voo das bruxas. Ora, sabe-se que a poção mágica das bruxas não passava de receitas feitas a partir de ervas naturais que teriam efeitos alucinógenos. Há relatos que, sob seus efeitos, as sujeitas teriam confessado para os juízes inquisitoriais que poderiam voar. Outro elemento é a figura do bode, bastante simbólico para as religiosidades pagãs da Antiguidade, que foram aculturadas pela expansão do Cristianismo, que acabou sendo associada ao Diabo. É verdade que o Cristianismo criou a imagem do demônio com características pertencentes aos mitos dos povos que dominou como forma de lembrar o cristão do que ele deve sentir medo e combater veementemente. A mulher, por sua vez, era vista como a materialização do maligno na terra. 1.3 Three Witches[3] (1514)


Figura 2: Three Witches e Departing for the Sabbat (1514). Por Hans Baldung Grien. Musée du Louvre, Paris.


A segunda iconografia, também da autoria de Hans Grien, retrata três bruxas nuas. O fato destas aparecerem sem vestimentas tem a ver com a hiper sexualização e erotização demasiada com que seus corpos eram encarados, além da falta de pudor característico das bruxas. Vale ressaltar a simbologia por trás da figura da mulher com aparência de velha sempre presente nas pinturas do alemão. Jean Delumeau (2009) afirma que “frequentemente a mulher velha e feia é apresentada como a encarnação do vício e a aliada privilegiada de satã. Na época da Renascença ela desperta verdadeiro medo”. Aqui se enfatiza as cobranças recaídas sobre o corpo da mulher que a qualquer sinal de defasagem era condenado. Por último, Silva (2015) aponta para a questão da posição invertida em que uma das bruxas fora pintada, isso porque seria uma demonstração do local de posição contrário ao que a Igreja estabeleceu. 1.4 Dulle Griet[4], (1563).


Figura 3: Dulle Griet (1561). Por Pieter Bruegel the Elder. Museum Mayer van den Bergh, Antuérpia.


O autor da terceira iconografia a ser analisada é o holandês Pieter Bruegel conhecido por suas pinturas temáticas do cotidiano do camponês com enfoque em sua religiosidade. Mas, “Dulle Griet” traduzido por Jean Delumeau como “Margot, a furiosa” dialoga com as atribuições misóginas do Martelo das Feiticeiras sobre a mulher ser “briguenta” e “colérica”. A obra retrata uma zona de conflito com cenas sobrepostas e uma mulher ao centro como protagonista e provavelmente a comandante do exército que aparece atacando. As chamas ao fundo do cenário simbolizariam o inferno. No lado esquerdo da imagem há uma figura gigante com a boca aberta que parece engolir os homens presentes ali. As pessoas e os animais aparecem transmutados. A mulher representa a líder do conflito e é a única imune ao caos instaurado relembrando a figura de Eva, a grande responsável por introduzir o pecado na Terra. Bruegel coloca em sua obra a figura feminina como uma revoltosa que parece estar fugindo, provavelmente do cotidiano de trabalho servil e doméstico condicionado pela mulher na sociedade europeia moderna. Ao passo que está se liberta das amarras do sistema montado pela Igreja Católica para persegui-la, os demais são punidos e amaldiçoados, segundo a lógica da mesma. Margot seria “a encarnação da mulher intratável e dominadora” (DELUMEAU, 2009).

CONCLUSÃO Sendo assim, é possível observar que os estereótipos reproduzidos acerca das mulheres na sociedade em que vivemos decorrem de uma longa construção realizada em suma pela Igreja Católica, que procurava culpabilizar determinados sujeitos pelos pecados do homem. A criação da imagem do Diabo e o fomento da Santa Inquisição recaiu sobre a figura feminina, acusada de bruxaria. Não só discursos, mas também iconografias misóginas foram amplamente divulgadas pela imprensa em toda Europa moderna. Pinturas como as de Hans Grien e Bruegel, analisadas neste artigo, são exemplos de imagens repletas de simbolismos cristãos e pagãos que representam a mulher ora como louca, ora como Jean Delumeau vai chamar de “agente de Satã”. Essas imagens foram tão bem aceitas e internalizadas que até hoje, 500 anos depois, as mulheres são subjugadas. A violência contra a mulher foi naturalizada. Milhares são assediadas, estupradas e mortas todos os dias, vítimas da misoginia latente. É imprescindível a reflexão sobre o assunto para se buscar reduzir danos e interromper esse ciclo de condenação eterna da mulher, desde Eva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGOSTINHO, Santo. O livre arbítrio. São Paulo: P5aulus, 2º ed. 1995.

AQUINO apud RANKE-HEINEMANN, U. Eunucos pelo reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja Católica. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1999, p.202.

DELUMEAU, Jean. A História do medo no Ocidente 1300-1800. Tradução: Maria Lúcia Machado. Companhia de Bolso, 2009, p. 462-522.

Gênesis. In: Bíblia Sagrada. São Paulo: Edições Loyola, 1995.

KRAMER; SPRENGER. O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 25º edição, 2014.

SILVA, J. A demonização da mulher: das representações em discursos católicos à análise das bruxas nas obras de Hans Baldung Grien. Monografia (Graduação em História). Faculdade de Ciências Sociais e Letras. Universidade de Taubaté. São Paulo. 2015.


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[1] Graduanda em Licenciatura em História na Universidade Federal do Maranhão [contato.louysess@outlook.com] [2] Figura1: Die Hexen (1510). Por Hans Baldung Grien. Chiaroscuro woodcut, Britsh Museum, London. [3] Imagem disponível em: <http://tinyways.com/media/img/grien/grien_02.jpg> Acesso em: 16 jul. 2019. [4] Imagem disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Dulle_Griet,_by_Pieter_Brueghel_(I).jpg>. Acesso em: 16 jul. 2019.

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