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EMÍLIA VIOTTI DA COSTA – A HISTÓRIA COMO INSTRUMENTO DE MUDANÇA

Júlia D'Aiuto Eckhardt Xavier[1] Prof.ª Dr.ª Rebeca Gontijo[2]


INTRODUÇÃO

A presente pesquisa, atrelada ao projeto “Biografias intelectuais: trajetórias de pesquisadoras pioneiras nos estudos históricos brasileiros”[3], nasce da percepção do tratamento dado às historiadoras no campo da história da historiografia que, não raro, são silenciadas e omitidas, por exemplo, das grandes obras de referência da área. Ao fazer um levantamento, facilmente encontramos produções que visam a seleção e compilação de grandes nomes da historiografia mundial de diversos períodos, homenageando historiadores importantes para consolidação ou renovação dos estudos históricos, mas, habitualmente, ignorando nomes femininos que exerceram e exercem esses papéis.

Pensando em contribuir no preenchimento dessas lacunas, o projeto visa o estudo das trajetórias intelectuais de grandes e pioneiras historiadoras brasileiras, tanto no momento da institucionalização do Ensino Superior de História (década de 1930), quanto o da institucionalização da pós-graduação (1970). Essas historiadoras exerceram importantes papéis na consolidação e renovação dos estudos históricos brasileiros. Boa parte de suas obras são marcos na historiografia do país, influenciaram gerações e seguem como referências até hoje, nos mais diversos segmentos da história.

Considerando esses pontos, dedico-me à análise da trajetória intelectual e profissional de Emília Viotti da Costa. Analisando suas experiências subjetivas, relações pessoais, inserção na vida acadêmica enquanto mulher em determinado tempo e espaço, além de suas valiosas obras, pretende-se, portanto, entender como o gênero atravessa o ofício do historiador, refletindo, muitas vezes, em como suas contribuições para o campo serão lembradas.


FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Realizou-se extenso levantamento de fonte sobre a autora: entrevistas para livros, revistas, jornais e programas de TV, depoimentos sobre seu trabalho, colaborações com outros autores, discursos, palestras em vídeos, documentos provenientes das universidades onde atuou, e, claro, sua vasta bibliografia, que conta com livros e artigos publicados em diversas línguas. Além de homenagens suscitadas em decorrência de seu falecimento em 2017.

Como o objetivo geral é traçar a trajetória intelectual da personagem histórica, fez-se necessário o numeroso e diversificado conjunto de fontes, afim de compará-las e ampliá-las, o que possibilitou também acesso às experiências pessoais e particulares. Para análise destas, discutiu-se acerca dos desafios de utilizar a escrita biográfica como fonte de acesso à conhecimento histórico. Além da utilização de relatos sobre si como fontes principais deste tipo de empreitada. Para tanto, utilizou-se as discussões e reflexões propostas por Pierre Bourdieu.

Para o alcance dos objetivos específicos, fez-se um apanhado da formação e legitimação do campo “História das mulheres e das relações de gênero” e utilizou-se a categoria gênero como pensada por Joan Scott, em “Gênero: uma categoria útil de análise história”, para a análise. Entendendo gênero como construção cultural e social das diferenças sexuais percebidas, e, como forma primária de significar as relações de poder, possibilita uma nova perspectiva nos estudos sobre mulheres.

Utilizou-se ainda, o estudo de Maria Helena Rolim Capelato, Raquel Glezer e Vera Lúcia Amaral Ferlini. Ao falarem sobre a escola uspiana de história, ajudam a entender o momento e o espaço em que Emília se insere no ambiente acadêmico e como isso se reflete ao longo de sua carreira.


DISCUSSÃO E RESULTADOS

Nascida em São Paulo capital, em 1928, Emília Viotti da Costa formou-se em História na Universidade de São Paulo, onde também atuou como professora do Departamento de História entre 1955 e 1969. Cassada pelo AI-5 após discurso contra a Reforma Universitária feito na ocasião da inauguração da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP, exilou-se nos Estados Unidos. Lá, reinseriu-se na vida acadêmica, atuando em diversas universidades, incluindo a Yale University, onde aposentou-se.

Sua trajetória é marcada pela preocupação com os problemas econômicos, sociais e políticos de sua época. Isto se reflete em sua maneira de pensar história, buscando compreender a forma com que os processos passados influenciam e se reproduzem no presente. Em mais de sessenta anos de ofício, não abandonou as influências teóricas e metodológicas marxistas, mas adicionou novas perspectivas e caminhou pelos mais variados temas e tempos históricos. Seu livro de estreia, “Da Senzala à Colônia” de 1966, é um marco para a renovação dos estudos sobre escravidão no Brasil.

No primeiro momento do trabalho, buscou-se demonstrar como as transformações na disciplina histórica e os movimentos feministas fazem surgir um campo que se dedica aos estudos sobre as vivências femininas, com o entendimento conquistado de que mulheres são sujeitos históricos. Além disso, fez-se um apanhado das discussões, tendências teóricas e metodológicas deste campo, definido como “História das Mulheres e das Relações de Gênero”, afim de embasamento para a análise da trajetória da historiadora.

Em seguida, antes de se dedicar à análise dos relatos no intuito de reconstruir parte de suas experiências de vida e carreira, discute-se acerca dos desafios de utilizar a escrita biográfica como fonte de acesso à conhecimento histórico. Além da utilização de relatos sobre si como fontes principais deste tipo de empreitada. Em seguida, analisamos sua trajetória desde de suas origens familiares e formação escolar, além de seu casamento, ingresso e caminhada na USP até sua aposentadoria compulsória, destacando suas mais importantes contribuições e os postos que alcançara. Todo este caminho em oposição aos pressupostos e imaginários da época sobre o papel da mulher na sociedade.

Enfim, continuamos a análise a partir de seu exílio nos Estados Unidos da América que representa uma virada em sua própria percepção e significação de sua condição de mulher em determinados contextos, considerando as expectativas sociais sobre suas funções e atividades. Concomitante a isto, sua reinserção profissional após a cassação na USP e a construção de uma carreira sólida em outro país. Para finalizar, refletimos sobre a construção do cânone historiográfico, considerando a trajetória exemplar de Emília Viotti da Costa e sua contribuição para a institucionalização e legitimação dos estudos históricos no Brasil, afim do alcance dos objetivos propostos.

Como conclusão de todo o processo de pesquisa, confirmamos que Emília Viotti da Costa é uma das grandes historiadoras brasileiras e seu legado historiográfico merece espaço nos cânones da área. Ela conquistou projeção e reconhecimento de seus pares masculinos em um ambiente marcadamente hierárquico e patriarcal, através de seu trabalho e de suas escolhas pessoais e profissionais.

Ao longo de sua trajetória pudemos aferir como o gênero, enquanto fenômeno social e categoria de análise histórica, atravessou suas vivências e experiências. Nos possibilitando enxergar que a escolha de transpor o imaginário e expectativa social acerca do papel feminino naquela sociedade e época, implicava no enfrentamento de tensões e problemáticas não colocadas aos seus colegas homens. Tais enfrentamentos ocorreram dentro e fora das esferas acadêmicas, de diferentes maneiras, atingindo suas relações familiares.

Pudemos analisar que mesmo desfrutando de certo privilégio econômico e social, as tensões de gênero, a ideia de uma mãe e esposa presente, e uma dona de casa eficiente, se contrapunham às suas escolhas profissionais. Tais tensões atingiram nova dimensão após seu exílio nos Estados Unidos, refletindo, inclusive, no valor intelectual de seus trabalhos. Fazendo-a sentir-se à margem.

A despeito destas pressões e dos novos obstáculos de reinserir-se profissionalmente longe de sua terra natal, após cerceamento de suas liberdades no contexto brasileiro de ditadura militar, Emília constrói um legado também na instituição norte-americana de Yale. Este trabalho apresenta que, apesar de seu currículo notável, a historiadora – assim como muitas outras – enfrentaram dificuldades no ofício por questões relativas ao gênero.

Suas obras mais marcantes versam sobre a escravidão no Brasil e América Latina, modificando os rumos desses estudos e fomentando as discussões nesta área. Sem abrir mão de seus referenciais metodológicos e teóricos marxistas e da Escola dos Analles, fundidos em busca de uma compreensão total da história, adicionando sempre novos elementos para análise das fontes. Contribuindo também para discussões acerca da metodologia e teoria da história. Não restringiu-se à temas, nem a recortes, sua maior preocupação era pensar sobre o Brasil e entender como o passado influenciou na constituição de estruturas sociais problemáticas, afim de ter ferramentas para transformá-las.

À luz de seu legado, este também fora um objetivo da pesquisa, ao buscar refletir sobre as questões de gênero e a maneira que este atravessa o ofício do historiador, tendo como consequência a construção de cânones que privilegiam nomes masculinos em detrimento de nomes femininos que exerceram o mesmo papel. Tentando contribuir nos estudos que abordam as mulheres enquanto sujeitos históricos, buscando a notoriedade dessas intelectuais, sem perder de vista a categoria gênero como modo crítico de assimilar conhecimentos históricos. É, portanto, uma busca pela utilização da história como instrumento de mudança, como entendida e pretendida por Emília Viotti da Costa.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. M. & AMADO, Janaina. Usos & abusos da História Oral. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996.


CAPELATO, Maria Helena; FERLINI, Vera Lúcia; GLEZER, Raquel. A escola uspiana de história. Estudos Avançados, São Paulo, v.8, n.22, p.348-358. 1994.


COSTA, Albertina de Oliveira; et. al. (Org.) Memórias das mulheres do exílio. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980.


COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à Colônia. 5 ed. São Paulo: Editora Unesp, 2017.

MORAES, José Geraldo Vinci de; REGO, José Marcio. Conversas com historiadores brasileiros. São Paulo: Ed. 34, 2002.

PINSKY, Carla Bassanezi. Mulheres dos anos dourados. São Paulo: Contexto, 2014.

SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria de análise histórica. In: Educação e Realidade, Porto Alegre, v.16, n.2, p.5-22, jul./dez., 1990.


________________________________________________________________________ [1] Graduada em História pela UFRRJ [2] Professora DHRI/ICHS/UFRRJ [3] Projeto ligado ao Edital n°13/2015 da CAPES, Memórias brasileira: biografias, integrando a Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul e A Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, contando com bolsistas de graduação e pós-graduação que se dedicaram às mais diversas intelectuais brasileiras.

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