IDEOLOGIA E CONFLITO: O MOVIMENTO DE RESISTÊNCIA EVANGÉLICA/LGBTQIA+ EM TORNO DO COMERCIAL
DA BURGERKING DIANTE DOS (NOVOS) ARRANJOS FAMILIARES
Ayrton Matheus da Silva Nascimento[1]
RESUMO: Os embates entre os grupos religiosos tradicionais e os grupos LGBTQIA+ em torno das questões ligadas à sexualidade e gênero perfazem inúmeros períodos na História, e, acarretam, por tanto, inúmeros outros conflitos na contemporaneidade, sob o demarcador da moral, dos bons costumes, da família, etc. Deste modo, buscamos, a partir da Análise de Discurso, estabelecer um gesto de leitura discursiva sobre o funcionamento da ideologia no processo de identificação, interpelação, assujeitamento e falseamento de neutralidade. Nesse sentido, elegemos como objeto de reflexão uma nota de repúdio produzida pela Frente Evangélica Parlamentar a um comercial idealizado pela empresa BurgerKing (2021), no qual crianças são convidadas a darem o seus pontos de vista sobre o relacionamento e a constituição de famílias homoafetivas. Isso nos permite estabelecer um movimento analítico sobre o ocorrido em questão, destacando como o funcionamento da ideologia se inscreve na linguagem falseando a produção da ilusão de uma neutralidade, apagando as marcas das filiações ideológicas dos sujeitos, das suas inscrição na História, e do gesto de interpretação (sempre lá) na compreensão/interpretação dos fatos e objetos da realidade e dos movimentos de resistência na História.
Palavras-chave: BurgerKing. Ideologia. Neutralidade. LGBTQIA+. Frente Parlamentar Evangélica.
Introdução
Os conflitos que têm se instalado e polarizado na contemporaneidade, além de dimensões tomadas principalmente nas mídias digitais, traduzem os desenhos da e na história de distintos grupos políticos e sujeitos dos quais constituem o movimento social da história em filiações, disputas, etc. Quer sejam em termos de classe, raça, sexualidade, gênero, religião, etc.
Deste modo, buscamos verter o nosso gesto de análise sobre um documento publicado pela Frente Parlamentar Evangélica de manifesto e resistência ao comercial produzido e divulgado pela empresa norte-americana BurgerKing em apoio a diversidade sexual e a promoção da igualdade, em combate ao preconceito às comunidades e famílias LGBTQIA +.
A resistência como buscamos pensá-la, neste caso, pode ser tomada de duas formas. A primeira delas, enquanto uma luta de grupos LGBTQIA+ para reivindicar as suas formas de existência, de modo a resistirem a ideologia dominante, heteronormativa, na luta pela conquista de seus direitos, etc. A outra forma ーtambém empregada neste trabalho, como buscamos apontar na titulação deste trabalho ー refere-se a uma resistência no nível ideológico de evangélicos que contrapõem e resistem às leituras e possibilidades de compreensão plurais em torno da composição do núcleo familiar e das sexualidades de grupos LGBTQIA+ ou de leituras que proporcionam discursos e práticas inclusivas e diversas, que, por tanto, conflitam e resistem, materializando em suas práticas, a exemplo, a nota de repúdio frente ao comercial que buscaremos analisar, como veremos adiante.
Este movimento, em particular de resistência, contra aos novos arranjos ou desenhos familiares, formado por movimentos LGBTs, destaca-se e se acentua pelo fato de estar vinculado a ideologia dominante, o que produz enquanto um dos seus efeitos a convocação de fortes mecanismos punitivos e de exclusão (FOUCAULT, 2005, 2014), materializados em termos das ausências de políticas que assistam e amparem adequadamente estes grupos LGBTQIA+, garantindo os seus direitos na esfera pública, semelhante aos demais grupos, e refletindo na ausência da produção de políticas severas que coíbam as práticas de homofobia. Fazendo-se, cada vez mais, necessário avançar neste debate, na esfera pública.
Outro percurso importante, que buscaremos tecer no nosso trabalho, consiste na nossa inscrição nos estudos discursivos a partir da Análise Materialista de Discurso, fundada por Pêcheux, na França (1960), a partir dos contributos da Linguística, História e Psicanálise, na compreensão dos discursos políticos em seus efeitos de sentidos, objetivando evidenciar o funcionamento da ideologia na produção dos seus efeitos de identificação, ilusão de neutralidade e no apagamento da inscrição (do sujeito e da ideologia) na Hhistória, e, constituindo, deste modo, a produção e mobilização de sentidos. O que para nós envolve as questões e os sentidos produzidos acerca de família, sexualidade, interpretação da realidade, etc.
Segundo Orlandi (2008, p. 33-34) “A análise de discurso problematizam fundamentalmente, para as ciências humanas e sociais, a natureza da concepção de sujeito, e de linguagem sobre as quais essas ciências se organizam", de modo que a língua(gem) não é transparente ao sujeito, muito menos a Hhistória, e aos atravessamento do inconsciente. Tendo todas estas questões materializadas nos processos discursivos.
Assim sendo, buscaremos estruturar o nosso trabalho da seguinte forma. Em um primeiro momento, nos deteremos a tecer breves considerações sobre o funcionamento da ideologia a partir de uma perspectiva discursiva. Em seguida, conduzimos o nosso leitor na apresentação do nosso material analisado, constituindo o nosso corpus de análise. Posteriormente, o nosso movimento será de trazer um breve gesto de análise. E, por fim, as nossas considerações finais.
O comercial da Burgerking em cena e a constituição do nosso corpus
O material com o qual buscaremos estabelecer as nossas análises referem-se a dizeres que têm circulado e operado na história, na contemporaneidade, despertando o nosso interesse pelos seus respectivos funcionamentos. Desta forma, o discurso, como buscamos operacionalizar, trata-se de efeito de sentidos entre locutores (PÊCHEUX, 1995; ORLANDI, 2012). É, pois, o movimento de produzir sentidos e efeitos de sentidos entre os sujeitos, ou como Orlandi (2012, p. 10) nos coloca é, pois, “o ritual da palavra”. O discurso é, nesse sentido, construído e mediado por outras instâncias internas ao sujeito (inconsciente, desejo) e externas que os produzem (como as condições sócio-históricas e ideológicas). Pêcheux (1990, p. 77) nos aponta que o discurso consiste em “[...] o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio históricas de identificação, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho”, de modo que ao investigá-lo (o discurso), conseguimos identificar o trabalho das e nas filiações sociais, ideológicas e históricas. Desta maneira, é no discurso que temos “o fechamento estrutural do texto [...] em relação com um exterior.” (ORLANDI, 2011, p.31). De modo que a sua historicidade pode ser apreendida, e isto acontece “[...] justamente no acontecimento do texto enquanto discurso” (ORLANDI, 2011, p. 31), dando-nos, na sua inscrição, a conhecer a manifestação das formas de existência material dos sujeitos. Deste modo, percebemos que os sentidos que são historicamente produzidos encontram-se em constante movimento, estabilizando e desestabilizando os sentidos e os sujeitos, de modo que estes, sujeitos e sentidos, são constituídos mutuamente, mas que por meio do discurso, estes movimentos podem ser apreendidos e investigados, pelos seus rastros deixados na história.
O acontecimento sob o qual buscaremos analisar trata-se de uma resposta evangélica por meio de inúmeras manifestações nas redes sociais e uma nota de repúdio a um comercial que ganhou a cena de inúmeros debates no segundo semestre de 2021, produzido pela empresa BurgerKing, e lançado em 23/06/2021, nomeado Como explicar? na qual busca, diante de um possível questionamento sobre como explicar para uma criança sobre o que é um relacionamento e família LGBTQIA +. Deste modo, o comercial traz crianças explicando de forma descontraída como elas enxergam as questões concernentes à sexualidade na constituição de relacionamentos experienciada nos seus seios familiares. Vejamos:
FIGURA 1. Burger King, comercial Como explicar.

Fonte: Comercial Burger King, You Tube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=301GMPrHt7M> Acesso em: 26 set. 2021.
O mesmo já ultrapassa mais de cinco milhões de visualizações, milhares de comentários e reações do público diverso, acarretando a inúmeros controvérsia e opiniões no contexto contemporâneo brasileiro.
O comercial, pelo seu caráter educativo/informativo, objetiva também provocar no interlocutor o fato de que, se elas, as crianças, podem entender e respeitar, o público adulto também pode/deve respeitar, o que produziu como um dos seus efeitos as inúmeras críticas em torno do uso da imagem de crianças aos quais estariam “ferindo aos valores tradicionais”.
A empresa, produtora do material, além de explicitamente evidenciarem que estes grupos e estes arranjos familiares seriam bem-vindos nesta rede de empresas e estabelecimentos, também o produzem a fim de alcançar um público e um retorno econômico cada vez mais diverso e maior, sob a investidura do respeito às diversidades.
Não interessa, neste momento, especificar o funcionamento do sistema capitalista na mediação/promoção destes discursos/comerciais e relações, mesmo crendo serem também importantes de serem investigados. Mas, antes, pela estrutura deste trabalho, restringimos a explicitação do funcionamento ideológico em suas formas de produção de resistência.
O comercial, possui inúmeras reações e mobilizações a nível nacional, de grupos evangélicos, político-sociais, etc. sofrendo nas mídias sociais a adjetivação de “burgerking lixo”[2], por grupos opositores, que a acusaram por tentativa de desvirtuar os bons valores e costumes da “família tradicional brasileira”, mas também tem recebido apoio por parte dos grupos defensores da pauta LGBTQIA + em respeito, valorização e promoção a tolerância e a diversidade sexual e de gênero que compõe o nosso país.
É importante destacar que dentro das condições de produção deste comercial, o Brasil tem experienciado um aumento significativo do conservadorismo ligado à política, o que torna mais denso e propenso a resistências e a intensificação de conflitos em torno de comerciais, políticas, etc. que defendem concepções de famílias distintas do padrão heteronormativo. Como veremos a exemplo dessas resistências na história a nota de repúdio a seguir:
Figura: Nota de repúdio. Frente Parlamentar Evangélica.

Fonte de acesso: <https://www.unigrejas.com/noticia/3143/bancada-evangelica-posta-carta-de-repudio-a-campanha-do-burger-king.html> Acesso em: 08 out. 2021
E é justamente dentro deste contexto, em resposta ao comercial, que o material sob o qual deteremos o nosso gesto de análise é produzido. Uma nota de repúdio produzida pela Frente Parlamentar Evangélica brasileira, divulgada em 28 de junho de 2021.
A ideologia: produção e o movimento de sentidos e(m) resistências
A definição de ideologia para esta nossa breve investigação, bem como para a análise de discurso, considera-se central, mas, não como esta é concebida em outras disciplinas, a saber, uma ocultação da realidade ou estrutura de representações. Antes, para nós, trata-se de um mecanismo de produção da evidência, essencial para o movimento de construção dos sentidos, permitindo que a linguagem e o sujeito se inscrevam na história.[3] Para Orlandi (2019), essa definição de ideologia nos permite compreender a instância exterior ao enunciado, o interdiscurso (a memória que fala antes, e em outro lugar), e não o que estaria oculto ao enunciado. Sendo a ideologia a materialização do discurso, e o discurso à materialização da linguagem no movimento histórico de produção dos sentidos. Vejamos como Orlandi (2019) nos pontua:
Fazendo entrar em consideração a ideologia, não há este “atrás”, não há sentido oculto. Há produção evidente. Há materialidade da linguagem, há interdiscurso, que não é atrás: é a exterioridade constitutiva, um fora dentro, uma dobra, em que o sujeito está inextricavelmente “envolvido” (ORLANDI, 2019, p. 22).
Desta forma, é posta em análise uma definição discursiva de ideologia que “Enquanto prática significante, discursiva, ela aparece como efeito da relação necessária do sujeito com a língua e com a história, para que signifique.” (ORLANDI, 2011, p. 28a). Se para nós a ideologia é uma prática significante, ligada ao sujeito que compõe e se inscreve na história, ambos encontram-se indissociáveis, isto é, a ideologia e o sujeito que a possui. Essa relação entre o sujeito e ideologia, pode ser resumida na tese de que Orlandi (2011b, p. 32): “Não há sujeito, não há sentido sem ideologia (sem interpretação). Os sujeitos e os sentidos se constituem na/pela interpretação (pela/na ideologia), produção de efeitos metafóricos, em que a língua está investida”. De acordo com Paul Henry (1992, p.188), em A Ferramenta Imperfeita, o sujeito é sempre e simultaneamente o sujeito do desejo (inconsciente) e o sujeito da ideologia. Para ele, este fato do sujeito ser duplamente acometimento “[...] tem a ver com o fato de nossos corpos serem atravessados pela linguagem antes de qualquer cogitação”. Deste modo, nos acrescenta Ferreira (2005) ao afirmar que o sujeito, ao se constituir pela linguagem, encontra na linguagem morada, produzindo, então, a sua marca enquanto efeito de linguagem, ao fazer uso desta, e se inscrever nela. Da mesma forma ocorre a identificação do sujeito com a ideologia, de modo que este ao sofrer a determinação por ela se configura enquanto assujeitado, como vemos: “Por outro lado, ao sofrer a determinação da ideologia, por via da interpelação, o sujeito se configura como assujeitado.” (FERREIRA, 2005, p. 72. grifo do autor). A ideologia encontra-se ligada ao inconsciente, de modo que a interpelação do indivíduo em sujeito, pela ideologia, apaga as marcas da inscrição da língua na História, passando a significar, produzindo, deste modo, o sentido de evidência e um efeito de sentido materialmente ligado a materialidade dos fatos e objetos sobre os quais o sujeito interpreta. Esse apagamento, produzido pela ideologia no sujeito, também produz a ilusão de que este é a origem ou fonte do seu dizer, bem como a impressão de que a linguagem seria ou poderia ser ingênua, neutra e transparente, como Orlandi (2011a) nos reforça:
Ideologia e inconsciente, na análise de discurso, estão materialmente ligados. A interpelação do indivíduo em sujeito, pela ideologia, traz necessariamente o apagamento da inscrição da língua na história para que signifique. O efeito é o da evidência do sentido (o sentido-lá), e a impressão do sujeito como origem do que diz. Efeitos que trabalham, ambos, a ilusão de transparência da linguagem(ORLANDI, 2011a, p. 28).
Nessa perspectiva, a ideologia não poder ser entendida como aquele determinado sentido produzido por um discurso, mas o mecanismo em funcionamento que o produz, que torna determinado sentido (im)possível de acordo com as posições ideológicas dos sujeitos (PÊCHEUX, 1990; ORLANDI, 2011b,), de modo que “[...] não há sentido sem ideologia (sem interpretação). Os sujeitos e os sentidos se constituem na/pela interpretação (pela/na ideologia), produção de efeitos metafóricos, em que a língua está investida.” (ORLANDI, 2011b, p.32), sendo possível de capturá-lo e compreendê-lo pela sua forma material, isto é, o discurso.
A ideologia em cena: breve percurso de análise
O nosso percurso de análise encontra-se disposto sobre três recortes (RC) de modo a constituir na íntegra a nota de repúdio, como veremos a seguir:
RC1- A Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional, vem a público, manifestar seu repúdio veemente à campanha publicitária da empresa BurgerKing Brasil, que se utilizou da imagem, da inocência e da ingenuidade de nossas crianças para agredir valores bíblicos e eternos com o intuito de confundir famílias.
No nosso primeiro recorte material, destacamos enquanto efeito de interpelação ideológica a identificação a determinados valores por meio da inscrição em formações ideológicas[4] e por tanto em formações discursivas[5], no qual podemos observar, por parte do manifesto assinado, e não a ausência de identificação a valores, mas a uma vinculação a outros, o que os conduz a luta pelos sentidos possíveis, e o conflito essencial aos sujeitos e as discursividades que destoam das suas formas de ler, se relacionar e apreender a realidade social. Nesse contexto, a ideologia opera, e os seus valores, neste caso, pertencentes a classe dominante, são vistos e tomados enquanto superiores, bons e corretos, diferente destes que o comercial estaria a representar. E, por tanto, legítimos de serem combatidos, deslegitimados e contrapostos.
Em termos históricos, estas escalas valorativas acerca das identificações dos sujeitos se acentuam no nosso contexto pela predominância da religião cristã, e dos seus fortes reflexos no cenário público e político brasileiro, o que produz fortes reações contra quaisquer valores que possam se opor aos valores preservados pelos grupos dominantes, independente de qual ideologia estes portem ou defendam. É importante destacar, que esse movimento de resistência, oposição e contraponto não se configura enquanto uma prática unicamente presente e exclusiva em um contexto cristão, mas que opera, em certo grau, presente em todo movimento e segmento na História.
Sob o raio inescapável da ação da ideologia, estes sujeitos produzem discursividades que não transparecem constantemente as suas escolhas, preterições e identificações, como também semelhantes à postura a que estes sujeitos combatem. Se a ideologia interpela a todos, e ao sujeito está fadado a não escapar do raio de ação deste ritual, toda a sua relação com o natural, o social, etc, será sempre ideológica. E, portanto, determinante na produção dos efeitos e sentidos possíveis ou não de família, inocência, confusão, do bom e correto, do posto à margem, etc.
É importante destacar que os sujeitos que produzem estas discursividades, refere-se a um “[...] sujeito como de-centrado (dividido): a intervenção do inconsciente e da ideologia” (ORLANDI, 2011a, p. 27). Distinto de uma definição de sujeito empírico. Tomado nesse caso, discursivamente, enquanto uma posição que este ocupa, a partir das suas identificações ideológicas e do seu posicionamento social. Trata-se de uma definição de sujeito discursivo atravessado pelo inconsciente e pela ideologia (ORLANDI, 2005; FERREIRA, 2005).
Acerca deste ponto, vejamos como Orlandi (2011a) nos coloca:
Não é uma forma de subjetividade mas um “lugar” que ocupa para ser sujeito do que diz. O modo pelo qual ele se constitui em sujeito, enquanto posição, não lhe é acessível, ele não tem acesso direto à exterioridade (interdiscurso) que o constitui. Correlatamente, a linguagem também não é transparente nem o mundo diretamente apreensível, quando se trata da significação (ORLANDI, 2011a, p. 28).
Deste modo, não se trata de analisarmos os sujeitos em suas subjetividades, mas de nos atentarmos para as posições que este ocupa, e em como essa posição está diretamente relacionada com o que este diz. Também é importante destacar que este lugar que ele ocupa (o sujeito) não é totalmente acessível, ou consciente ao discursar, muito menos a memória que sustenta o que ele diz, na construção dos dizeres e dos sentidos que este produz, mas sempre relacionado à estrutura social. Ainda sobre este ponto, destacamos que o sujeito, ao discursar, denúncia a todo um sistema significante, que contém espessura material e historicidade constitutiva do e no seu dizer, como podemos observar neste caso analisado. O movimento que resiste, compreende e interpreta a família, casamento, etc., a partir de um sistema de significante. A autora nos ensina:
[...] o sujeito reporta-se a um sistema significante investido de sentidos, sua espessura material, sua historicidade. Trata-se do sujeito significante enquanto sujeito histórico (material), posição-sujeito, que se produz entre diferentes discursos, numa relação regrada com a memória do dizer (interdiscurso), definindo-se em função de uma formação discursiva em relação às demais (ORLANDI, 2011a, p. 31).
Conceber o sujeito enquanto posição, e evidenciar os mecanismos de produção e de identificação do mesmo a uma ideologia, nos permitem ultrapassar uma noção pragmática de sujeito, perpassando a instância da formulação do discurso, e nos enveredar, deste modo, pelos processos de constituição dos mesmos. Esta definição de sujeito pragmático que nos distanciamos, pontua Orlandi:
O sujeito pragmático resulta já dessa constituição ideológica. E os estudos pragmáticos refletem esse efeito de objetividade, não o atravessam. Nesse sentido, eles param na instância da formulação do discurso e não atingem a instância de sua constituição. A pragmática trabalha, desse modo, sob o efeito da constituição discursiva dos referentes. Efeito que faz pensar que o sentido resulta de uma ação do contexto sobre a língua. Uma derivação. Um cálculo sobre evidências, na relação com as intenções do sujeito, psicologicamente caracterizadas (ORLANDI, 2011a, p. 31).
Para Ferreira (2005, p. 40), a definição de sujeito do discurso “[...] vai, então, colocar-se estratégica e perigosamente entre o sujeito da ideologia (pela noção de assujeitamento) e o sujeito da psicanálise (pela noção de inconsciente), ambos constituídos e revestidos materialmente pela linguagem.”. Deste modo, produz o deslocando no sujeito ideológico do marxismo-althusseriano e o sujeito do inconsciente freud-lacaniano tendo como porta de acesso os processos da linguagem (FERREIRA, 2003). Deste modo, o(s) sujeito(s) que produzem estas discursividades encontram-se imbricados nesta complexa relação entre os mecanismos que os constitui, o lugar que estes ocupam, sendo constitutivo dos sentidos que este nos produz, atrelado ao funcionamento da ideologia, como buscamos apresentar precedentemente.
Neste caso, trazer a figura de crianças tecendo as suas explicações, e apresentando a homoafetividade enquanto algo plausível como a heterossexualidade, estaria, para estes grupos contrários, constituindo um abuso da imagem e da inocência, fortemente acentuada pela contraposição dos valores bíblicos. O que nos permite aprender que se as crianças fossem usadas para defender tais valores, nos parece que não seria uma ofensa. O que desloca da ilusão de que o problema estaria no uso da imagem de crianças para defenderem pautas “partidárias”[6], mas, nos permite perceber que não seria problemático para estes grupos tradicionais se as crianças fossem usadas para defenderem valores destes grupos tradicionais.
O emprego destes adjetivos atrelados à figura das crianças produz o efeito de incapacidade de defesa e discernimento moral maduro para que estas possam compreender o funcionamento político que “estaria por trás”. Produzindo também, enquanto um dos seus efeitos, a ilusão de que apenas a heteronormatividade seria compreendido enquanto correto, pois se estas não fossem ingênuas e inocentes, poderia julgar discernir corretamente e chegarem, desta maneira, à mesma conclusão que estes grupos, de que a prática homoafetiva seria errada, como estes compreendem.
Percebemos que, ainda sob a explicitação do funcionamento da ideologia, existe, por meio deste comercial, uma contraposição à como o tradicionalismo compreende os valores bíblicos, e os toma como eternos, no qual apaga a relação entre texto, interpretação e realidade. De acordo com essa posição social, a agressão, neste caso, não estaria acometendo aos valores particulares, adotados e portados por estes grupos, mas a Deus e a sua palavra, e mais, que a compreensão que estes sujeitos possuem sobre estas questões não transparece enquanto uma interpretação, que emerge na história e que pelo desenvolvimento da história se tornou hegemônica na contemporaneidade. Deste modo, os valores são colocados enquanto inerentes, transparentes e auto evidentes, não enquanto uma leitura destes grupos, mas como se estes valores fossem fatos absolutos, espontâneos, e, deste modo, fora do raio da interpretação e da discussão.
A compreensão destes valores enquanto eternos também se produzem pela ideologia ao apagar a historicidade dos sentidos e dos dizeres, além de apresentá-los enquanto transparentes e os únicos a fazerem sentido, para esses grupos identificados, na história. Portanto, para este lugar ocupado em que o(s) sujeito(s) que enunciam está a ocupar existiriam sim valores eternos e que, assim sendo, deveriam ser mantidos e preservados.
Um outro efeito que opera e é produzido é de que se este trabalho do comercial estaria confundindo a família, todas as famílias que destoassem dessa vinculação ideológica, consequentemente seriam famílias confusas, e por tanto que careceriam de orientação e bons valores para se nortearem na vida social.
Se por um lado estes novos desenhos resistem a ideologia dominante, toda e qualquer ideologia que destoe, rompa, desafie ou subverta esta norma e a este ideal, também sofre os severos efeitos da resistência que se acentua pelo caráter dominante e hegemônico que esta dada ideologia está a representar no quadro das relações sociais e das relações de força que operam na nossa sociedade.
RC2 A referida empresa propõe, ao agredir os princípios bíblicos e diferenças fisiológicas naturais, criar uma nova formatação familiar que afronta a Bíblia sagrada. Procuram assim, fazer com que o homem e a mulher não se diferenciem mais pelo sexo, mas sim pelo gênero.
RC3 Trata-se de uma tentativa covarde para corromper as famílias, confundir pais e interferir na formação de menores, atacando princípios morais e éticos que devem ser preservados. A FPE continuará vigilante e não se calará frente a tentativas de ataques a nossa fé e valores!
No funcionamento desses discursos, enunciados do campo da biologia, ou seja do que seria a determinação natural sobre os corpos são tomados enquanto princípios que regulam e que coaduna com perspectiva e valores defendidos por estes grupos e pelos seus manuais de fé, o que legitimaria essa contraposição em relação à nova possibilidade de outros desenhos e rearranjo familiares.
Notamos que um dos fortes mecanismo na produção desses sentidos evidências se apresentam quando direcionados para o manual de fé e prática adotados por estes grupos, lidos e interpretados pela ação ideológica enquanto superiores, eternos e sagrados, e enquanto "princípios morais e éticos que devem ser preservados” produzindo efeito de transparência e eternidade, apagando as marcas da interpretação, e concedendo a ilusão de eternidade e não enquanto um resultado e produto da/na história de compreensão desses grupos.
Por fim, buscamos elencar que a resistência LGBTQIA+, que resiste em relação à ideologia dominante, ao buscar deslocar e a produzir a partir dessa identificação e subjetividade as suas formas de resistência, também é contraposta e resistida pelos grupos que acreditam que o arranjo familiar deva ser unicamente restrito a figura de homem, mulher e filhos. Deste modo, o que também atravessa fortemente estas relações, são as relações entre o sistema e a ideologia dominante e as demais ideologias que disputam dentro destes aparelhos, a saber Estado, família, etc., colocando uns sujeitos ao centro, e os outros a margem, em uma luta sem fim, produzindo, dessa maneira, o movimento da/na história.
Movimento de fecho
Neste nosso percurso, não procuramos exaurir o nosso material em questão, antes, iniciar alguns gestos de compreensão e análise de questões ainda tão sensíveis no mundo contemporâneo, enquanto reflexo da prática social dos distintos sujeitos em suas relações com os sentidos, a ideologia e a história.
Deste modo, buscamos perceber, por meios das discursividades, o raio de efeito da ideologia na promoção da identificação dos sujeitos, apagamento da sua inscrição e a adesão de determinados valores em detrimento de outros, produzindo, desta maneira, interpretações e resistências em relação às questões que nos cercam, essenciais para a compreensão destes conflitos históricos.
A ideologia, como vimos, não é compreendida enquanto algo oculto ou atrás dos textos, discursos, etc., mas enquanto uma estrutura-funcionamento e uma relação necessária para que o sujeito atravessado pela linguagem se inscreva na História e para que os sentidos sejam, então, possíveis.
Neste caso em particular, podemos perceber a resistência em um primeiro momento enquanto oposição a leituras inclusivas em torno das noções de homoafetividade, constituição familiar, etc., na deslegitimação do comercial, e da possibilidade de leitura e compreensão de famílias inclusivas, que fujam do arranjo/modelo/padrão hegemônico. Também a existência e luta política de grupos LGBTQIA + em relação a ideologia dominante na manifestação e resistência da validade de seus valores e das suas subjetividades em relação a estas noções hegemônicas e naturalizadas, tomadas enquanto evidência e eternas na História.Ler estes discursos/conflitos nos permitem compreender o embate e o funcionamento das mais distintas formações ideológicas que constituem o fazer social do sujeito e os cursos que a história tem tomado na promoção e produção de leituras mais inclusivas ou não da nossa realidade social.
Referências
FERREIRA, Maria Cristina Leandro. Linguagem, ideologia e psicanálise. Estudos da linguagem. Vitória da Conquista, Bahia. N. 1 (jun. 2005), p. 69-75, 2005.
FERREIRA, Maria Cristina Leandro. O quadro atual da Análise de Discurso no Brasil. Letras, n. 27, p. 39-46, 2003.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Ed. Graal. 2005.
__________. Vigiar e punir. Leya, 2014.
FRENTE PARLAMENTAR EVANGÉLICA. Repúdio a campanha publicitária do BurgerKing Brasil. Disponível em: <https://www.unigrejas.com/noticia/3143/bancada-evangelica-posta-carta-de-repudio-a-campanha-do-burger-king.html> Acesso em: 08 out. 2021.
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ORLANDI, E. P. EXTERIORIDADE E IDEOLOGIA. Cadernos de Estudos Lingüísticos, Campinas, SP, v. 30, 2011a. DOI: 10.20396/cel.v30i0.8637037. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/view/8637037. Acesso em: 5 jan. 2021. __________. A análise de discurso e seus entremeios: notas a sua história no Brasil. Cadernos de Estudos Lingüísticos, Campinas, SP, v. 42, p. 21–40, 2011b. DOI: 10.20396/cel.v42i0.8637139. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/view/8637139. Acesso em: 7 jan. 2021. __________. Política e silêncio na América Latina: quando se fala pelo outro. In: Evandra Grigoletto. Fabiele Stockmans De Nardi. Helson Flávio da Silva Sobrinho (Org.) Silêncio, Memória, Resistência: a política e o político no discurso. 1. ed. Campinas: Pontes, 2019.
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[1] Graduado em História pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Campus do Sertão. Atualmente é aluno do mestrado em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Sergipe (PROHIS/UFS).
[2] Reações estas, como podemos observar, nas seguintes matérias: 1. O que diz o Burger King após ser criticado por campanha de Orgulho LGBTI+ | Exame <Https://exame.com/marketing/o-que-diz-o-burger-king-apos-ser-criticado-por-campanha-de-orgulho-lgbti/> Acesso em 06/12/2021. 2. Burger King sofre ataques bolsonaristas após comercial com crianças falando de sexualidade (yahoo.com) <https://br.noticias.yahoo.com/burger-king-sofre-ataques-bolsonaristas-apos-comercial-com-criancas-falando-de-sexualidade-124621078.html>Acesso em 06/12/2021. 3. Burger King usa crianças para fazer propaganda sobre orientação sexual (gazetabrasil.com.br) <https://gazetabrasil.com.br/brasil/2021/06/25/burger-king-usa-criancas-para-fazer-propaganda-sobre-orientacao-sexual/> Acesso em 06/12/2021. 4. Burger King é atacado nas redes após propaganda sobre LGBTQIA+ | Diário da Manhã (dm.com.br) <https://www.dm.com.br/cotidiano/2021/06/burger-king-e-atacado-nas-redes-apos-propaganda-sobre-lgbtqia/> Acesso em 06/12/2021.
[3] Como o nosso leitor perceberá, a definição de ideologia aqui empregada trata-se de uma definição discursiva, entretanto, pela estrutura deste trabalho, não nos deteremos a apresentar como outras tradições do conhecimento buscaram pensá-la, apesar de serem distintas da forma com a qual trabalhamos, entretanto fazemos a recomendação, a nível de aprofundamento, para o nosso leitor, de trabalhos como: I. CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. Brasiliense, 2017. II. EAGLETON, Terry. Ideologia. Unesp, 1997. III. RICOEUR, Paul. A ideologia e a utopia. Autêntica, 2017. IV. MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. In: O poder da ideologia. 2012. p. 566-566. V. FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. Editora Ática, 1993. etc.
[4] De acordo com Pêcheux (2009, p. 147), é por meio da Formação Ideológica (FI) que podemos compreender que [...] o sentido de uma palavra, expressão, de uma proposição etc., 'não existe em si mesmo' (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas)”
[5] Os sentidos que se presentificam nas palavras, conforme Orlandi (2017), derivam das formações discursivas nas quais o sujeito pertence, de modo que o sentido se torna um resultado produzido e não uma essência inerente às palavras. Em outros termos, as mesmas palavras podem significar coisas completamente distintas de acordo com os sujeitos que as empregam. A isto chamamos de Formação Discursiva (FD), ou seja, “[...] aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determina o que pode e deve ser dito. Por tanto, as palavras, proposições, expressões recebem seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas.” (ORLANDI, 2017, p. 20.)
[6] É importante destacar que não compreendemos que alguma pauta seja apolítica, apartidária, neutra, descomprometida, etc. Antes, é fruto da relação entre sujeito, posição social, ideologia e condições de produção, situado e filiado, e, por tanto, sempre comprometido com algum valor, etc.